Entrevista da Terça #6

11 de junho de 2024 - 18:59

Por Júlia Lopes

A cada terça-feira uma nova conversa: com gente que trabalha no Idace ou não, mas que leva a luta no campo como bandeira. Que pensa a reforma agrária como uma urgência para um mundo mais igualitário, que faz do trabalho no campo um modo de relação saudável com a natureza e as gerações porvir. Essa é a nossa sexta entrevista. Acompanhe!

Com muita luta e razão, o movimento negro vem abrindo seus espaços de luta. A fala é um desses espaços: para uma luta antirracista é preciso ouvir as pessoas que sofrem com o racismo, cotidianamente.

Por isso esta introdução vai curta: as mulheres que aqui conversam com vocês se apresentam pelo que ecoam a partir de anos dedicados à ocupação dos espaços pela e para a população negra. Zelma Madeira, titular da Secretaria da Igualdade Racial, e Martír Silva, secretária executiva, são nossas convidadas desta Entrevista da Terça, em sua sexta edição.

Mas antes, um convite: no dia 20 de junho, às 8h30, no Auditório da SDA, acontece a retomada do projeto Idace Debate, que vai celebrar a assinatura do Decreto nº 36.036, deste ano. Zelma e Juliana Alves, titular da Secretaria dos Povos Indígenas, são as convidadas. Para mais detalhes, clica aqui.

1. Como tem sido fazer o enfrentamento ao racismo a partir da Secretaria?
Zelma Madeira O enfrentamento ao racismo por parte da Seir tem sido feito através de agenda própria e agenda transversal. Nesse governo temos um diferencial: as secretarias que estão mais próximas da gente se vinculou à Seir através do PPA (Plano Plurianual), definindo as ações que vão ser feitas. E nós vamos monitorando essas ações, no sentido que a gente garanta um orçamento sensível à questão gênero e raça.

Nós fizemos um PPA que muitas das secretarias passaram a entregar as ações, as metas, as entregas e o compromisso com o orçamento. Isso como pauta da transversalidade.

No que concerne à nossa agenda própria, nós temos enfrentado o racismo através de projetos, como o Quilombo Vivo, de ações e metas formativas, tanto da sociedade civil, de uma maneira geral, como o serviço público.

A gente tem feito muitos pactos de cooperação técnica, para que possamos fazer uma formação, um trabalho de fortalecimento, de atendimento social e jurídico às comunidades para que elas possam entender como anda o processo, como podemos fortalecê-las também numa articulação com as prefeituras dos municípios onde estão localizadas.

Por isso um outro ponto é fortalecer e garantir a interiorização da política da igualdade racial. E a gente tem como estratégia o Selo Município Sem Racismo. A gente tem feito articulação com os municípios, insistindo para que eles tenham sua própria política ao criar órgãos que respondam por essas políticas, ao criar os conselhos, a validar e valorizar a lei 10.639, as atividades de combate ao racismo. Já mobilizamos 44 municípios e temos uma meta de entregar o selo a 10 que já pediram adesão. Esse número só não vai ser maior por conta do período eleitoral.

Martír Silva O enfrentamento ao racismo e as políticas de igualdade racial no Ceará na verdade antecedem a criação da Secretaria – que representa um grande avanço nessa política no nosso estado. Mas nós, desde 2010, seguindo a estrutura do Governo Federal, instituímos aqui no Ceará a Coordenadoria da Igualdade Racial, a criação do Conselho Estadual da Igualdade Racial, então algumas ações já vinham se desenvolvendo.

Mas passa a ser com a Seir, estrutura como órgão do governo, que temos uma política mais robusta. A secretaria tem orçamento próprio, tem ações planejadas no PPA, equipe de trabalho. Com isso nós tivemos a oportunidade de fazer um trabalho muito mais consistente, muito mais ancorado em eixos fundamentais para a política da igualdade racial. Em suma, nós podemos dizer que fazer esse enfrentamento a partir da secretaria é uma oportunidade que o povo cearense está tendo para definitivamente ter essa política como uma política de estado, para que ela não se limita ao enfrentamento ao racismo. Ela é uma política de combate ao racismo, é verdade, mas de uma forma estruturada e indispensável com as políticas de promoção da igualdade racial que se assenta tanto no eixo de garantia de direitos de inclusão sócio-economica, de ações de valorização, do reconhecimento, como também ação de aplicação das medidas das ações afirmativas em todos os campos, como reserva de vagas em concursos públicos.

2. Quais particularidades da sociedade cearense em relação à luta antirracista que vocês destacariam como cruciais para essa luta?
ZM
Primeiro é fazer uma reflexão crítica e propositiva acerca de discurso ideológico da ausência da população negra no estado, que não confere com a verdade. A gente tem, sim, uma grande população negra, de pretos e pardos. Mesmo num estado marcado pela mestiçagem, pela grande presença dos mestiços e pardos, isso não é motivo para a gente negar a presença dos negros.

E aí, como é uma realidade nacional, precisamos também entender que não são só os grupos racializados de forma subalterna, como a população negra, povos e comunidades tradicionais, com os quais a gente trabalha, ou seja, não compete só a essas pessoas, substituir ou desmantelar essa estrutura racista. Para combater o racismo, o racismo estrutural, institucional, nas relações interpessoais, nós precisamos que todos estejamos imbuídos e preocupados em combater o racismo e as desigualdades sociais.

Se o nosso propósito é alcançar uma sociedade com sustentabilidade, em termos econômicos, sociais e ambientais é preciso considerar as diferentes formas desse povo se organizar, resistir, reinventar. E eles tem sido criativos, inventivos, na denúncia e ao dizer da sua potencialidade. E ao mostrar para a sociedade que eles querem um pacto civilizatório de uma sociedade mais humana, mais democrática em termos raciais.

MS A sociedade cearense se assemelha, em muito, no quesito relações étnico-raciais, com toda a sociedade brasileira. Mas no Ceará podemos destacar aspectos que são entre si contraditórios. Um dos destaques é da afirmação equivocada da inexistência de negros no Ceará. Uma tentativa de adesão a uma noção de branqueamento da sociedade, o que é absolutamente inverídico já que nós constatamos, com as informações do último censo do IBGE, que 70,5% da população cearense se auto-declara negra e parda.

E a outra particularidade, que é contraditória a essa da negação da presença do negro no Estado, é uma aspiração a ser o Ceará uma terra de liberdade, baseada sobretudo no fato histórico que nós fomos o estado que pioneiramente abolimos a escravidão. É contraditório você dizer que não tem negro, mas ao mesmo tempo festejar a condição de abolicionismo pioneiro.

No mais, é uma grande marca que nos dá mais firmeza para a política antirracista e de promoção de direitos, é a diversidade étnico-racial do cearense. Da cearensidade. Aqui nós temos uma população importante, negra, nós temos uma presença importante de remanescentes de quilombos, um número grande e valoroso de pertencimento aos povos de terreiro com o mapeamento de mais de 500 casas, que não são apenas de cunho religioso, mas cultural, político, de articulação social, de movimento, nós temos aí os povos de terreiros nos dando essa diversidade.

Temos uma população de ciganos que está sendo mapeada agora. Neste momento, por exemplo, estamos no processo de conclusão de dados que estão vindo da SDA. E temos também, embora esteja fora da alçada da nossa Secretaria, os povos indígenas que atualmente contam com a própria Secretaria.

3. Como avaliam a chegada desse novo Decreto de proteção aos PCTs?
ZM Esse decreto, para nós, se configura como um grande ativo porque nós precisamos regularizar os territórios desses povos e comunidades tradicionais. E eles aguardam numa organização que lhes exige muito esforço porque demora demais. Nós temos mapeadas mais de 109 comunidades quilombolas; certificadas pela Fundação Cultural Palmares nós temos 61, cinco em análise, e esse processo tem sido lento. O decreto conta a nosso favor, é uma forma de garantir regularização não só pelo Incra, mas também pelo Idace.

E por isso que nós vamos, nas próximas semanas, nos reunir, fazer um plano de trabalho. Como nós vamos trabalhar em cima dessas comunidades que sofrem um período prolongado, para se alcançar a titularidade dos seus territórios, e agora com o decreto, com o compromisso do governador, nós acreditamos ser possível sermos mais ágeis. Nós estamos esperançosos, considerando uma importante etapa para acelerar o trabalho.

MS O Decreto chega numa hora muito esperada para ampliar a regularização fundiária e estabelecer, como uma ação estruturante, as políticas públicas do nosso estado, a regularização fundiária para os povos e comunidades tradicionais. No nosso caso, as comunidades quilombolas.

Nós entendemos que povos e comunidades tradicionais carecem da atenção do estado para acessar a todas as políticas de serviços públicos, que ainda chegam de forma limitada, não universal e mediada pelo racismo institucional. Mas a política de regularização fundiária é de uma importância tal que materializa a possibilidade real de garantir o direito à terra, de garantir o direito a uma territorialidade, onde sejam exercidos todos os fazeres, os saberes, de cada povo e comunidade. Porque é na terra onde se cria a possibilidade material do pleno exercício das condições e da tradicionalidade dos nossos povos e comunidades.