Entrevista da terça #2

14 de maio de 2024 - 17:37

A cada terça-feira uma nova conversa: com gente que trabalha no Idace ou não, mas que leva a luta no campo como bandeira. Que pensa a reforma agrária como uma urgência para um mundo mais igualitário, que faz do trabalho no campo um modo de relação saudável com a natureza e as gerações porvir. Essa é a nossa segunda entrevista. Acompanhe!

Escutar e conhecer para comunicar: ao pensar o trabalho na área rural e a luta por uma vida melhor sobre a Terra, o fotógrafo Crystiano Magalhães não vacila. Para ele, para a mudança acontecer é imprescindível estabelecer relações, conhecer as pessoas, ouvir, trocar, dedicar atenção. Depois de uma vida inteira morando em grandes centro urbanos – Crystiano cresceu em Fortaleza e depois foi para o Rio de Janeiro – ele vive agora em Canindé, onde o Idace tem um escritório regional, coordenado por Graça Paulino. As imagens que ele fez de algumas atividades do órgão naquele município motivaram a conversa que você lê a seguir.

Nela, o fotógrafo discute a mudança social que a Comunicação, com C maiúsculo, pode promover a partir do seu caráter básico: aproximar e sensibilizar pessoas com histórias. Na conversa, ele explica como se dá a presença da fotografia nesse processo e como ela pode ser uma grande parceira para os movimentos sociais – seja como como documento, como possibilidade de criação de uma linguagem própria dos sujeitos que a produzem, seja como elemento de fruição artística. A fotografia e sua infinita capacidade de transformar encanta Crystiano, que nos contagia.

A conversa mostra, porém, que no campo essa presença ainda não é totalmente conhecida. Ainda que as imagens para as redes sociais estejam sendo feitas em grande quantidade, a fotografia enquanto registro, documento, modos de conhecer, ainda é pouco explorada. A câmera ainda assusta, ainda é invasiva. Ainda não é uma aliada. Crystiano nos ajuda a reverter esse quadro. Boa leitura!

Como você imagina que a fotografia e a imagem se relacionam com os movimentos sociais? Quais seriam os frutos dessa relação? O que está implicado nessa relação?
Eu cresci nos movimentos sociais de periferia, que era movimentos de hip hop organizado, Juventude Vermelha, movimentos marginais, de favela. E durante muito tempo eu ouvi histórias desse movimento, sobre essa trajetória e sempre me interessei muito por eles e via a carência que existia de retratos, de imagens de registro dessa história. Eu lia muitos documentos dos movimentos e não tinham os registros. Então quando eu me aproximei da fotografia (através do militante carioca Maurício Hora), quando eu pude exercer a fotografia, a primeira coisa que eu pensei foi em como sanar essa lacuna que o movimento tinha.

Então eu vejo meio que a fotografia cumprindo esse papel. você vai trazer alguém desse meio, do movimento social, vai comunicar, vai ter esse registro, que vai servir tanto como uma forma de comunicação como também como uma expressão artística futura. E hoje, por conta desse trabalho que desenvolvo, ele acabou tendo uma série de registros. O MH2O (do qual fazia parte) acabou, mas ficou com esses registros, com muitas fotografias. E a gente acabou trazendo outras pessoas para dentro, a gente acabou criando o Zona Imaginária, no Rio de Janeiro, exatamente pra fazer esse papel, o próprio movimento fazendo o registro, fazendo a documentação.

Como você percebe a diferença entre o trabalho feito na área urbana e esse feito no campo?
Primeira coisa que eu vejo é um enorme abismo, porque parece que a gente voltou dez ou mais anos na relação com a fotografia. Vejo o quanto as pessoas tem a carência de informação, de conhecimento, de assessoria, coisa que na cidade é mais fluido, por mais que seja também desigual.

Essa diferença se dá principalmente na comunicação, a gente percebe o quanto o movimento no campo precisa avançar na forma de comunicação e a fotografia pode ser uma ferramenta para ajudar a fazer isso. Mas que ao mesmo tempo a gente precisa muito refletir sobre como fazer, como dizer, para as pessoas aqui no interior. Como acessar essas pessoas, como fazê-las acreditar no que a gente está falando, como fazer entender o que a gente está falando é verdade. Talvez não seja nem ir logo fotografando, primeiro a gente tem que entender essas pessoas, o linguajar, o modo de vida de quem está no campo, para então conseguir se comunicar com elas, para que elas possam ouvir e respeitar o que estamos dizendo, somar e compartilhar essas experiências e pensar em formas de ter um mundo melhor.

Como o trabalho no campo pode crescer a partir da chave da comunicação, a partir especificamente da fotografia?
Quando saio com o meu equipamento fotográfico, sob certas perspectivas, eu estou invadindo uma cena. Sacar a câmera, tirar uma foto… é uma forma de me apropriando daquela imagem. Será que não é melhor falar com essas pessoas antes, estabelecer uma relação? A gente não pode só chegar e apontar a câmera e fazer aquele registro. Às vezes eu também faço isso, mas eu me interesso mais por buscar me comunicar com as pessoas, pedir licença e nesse diálogo romper barreiras, criar conexão com as pessoas, criar familiaridade, de forma sincera, de querer saber e ter interesse real na vida daquelas pessoas.

Criar essas conexões, ter acesso a tanta dessa riqueza que essas pessoas tem, para compartilhar pela fotografia… Tudo isso transforma demais a minha fotografia. É essencial para a nossa comunicação, para o que a gente faz, para a gente alcançar os nossos objetivos de um mundo melhor, no campo, se a gente quer realmente que a vida das pessoas no campo seja melhor, a gente também está transformando o nosso mundo. A gente quer isso porque a gente quer transformar esse mundo desigual.

A gente tem um problema de Comunicação. Conviver é experimentar esse problema, já que precisamos tentar entender as pessoas, ouvi-las melhor, vivenciar também a experiência delas. Às vezes a gente chega como técnico, especialista, e joga o que tem que ser feito. Vou dar exemplo de um projeto do qual faço uso, uma ideia muito boa que tem aqui no campo que eu vejo as pessoas não usarem por causa de alguns detalhes. Muita gente não faz ele funcionar ou abandona por causa desses detalhes. E o projeto não vai pra frente. E não vai para frente porque quem implantou e pensou esse projeto não vem pra campo para ver quais os problemas que ele tinha depois da implementação, qual o problema da realidade da pessoa do campo que vai fazer uso desse projeto enfrenta no seu dia a dia e por isso o projeto não anda porque vai dando trabalho para quem usa. A pessoa encontra um problema, não consegue dar solução, os técnicos, os especialistas não vão lá, para trabalhar esse feedback e o programa fica meio deficitário. Não tem conversa, não tem diálogo, aproximação. Então é nesse sentido que digo estar mais presente. A fotografia é uma ferramenta que pode ajudar nessa comunicação. Trazer o campesino mais para perto, trazer as comunidades, explicar, e essas pessoas se verem retratadas, se verem reconhecidas, se verem respeitadas. Acho que a fotografia tem essa capacidade de envolver. A expressão mais artística da fotografia – poder ver aqueles olhares, os rostos, as texturas de peles, de cores, se encantar com aquilo ali e poder abrir portas e pontes de comunicação para que a gente possa ter mais acesso. E possa transformar.

 

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